segunda-feira, 3 de junho de 2019

O gato

Eu queria contar uma história para vocês. Talvez pareça nada a ver, mas enfim.
É uma história que aconteceu no sítio que os meus pais têm, no interior, num verão que passei por lá, alguns anos atrás.
Nas férias, a casa fica sempre cheia. Família, amigos e vizinhos, chegando e saindo toda hora. E um gato.
Quer dizer: a gente não tem gato e, para falar a verdade, nem queria ter. Mas naquele ano, apareceu um gato lá. E foi ficando...

Detalhe: meu irmão odeia gatos. O-de-ia. O simples fato de saber que tinha um gato por perto já não deixava ele dormir.
A mãe não demorou para se solidarizar com o sofrimento do filho - além de ela que nunca gostou de quem entrava na casa dela sem pedir licença.
O pai tem alergia a gato. Mas também tem pavor de rato e portanto, era o único que ainda enxergava o lado bom da conjuntura.

Quando a mãe se deu conta que o visitante, além de mal-educado, estava se apegando ao lar, ela começou a suspeitar que alguém estivesse dando-lhe comida. Além do pai, foram culpados as crianças e convidados, por não estarem entendendo a gravidade da situação. A ordem foi dada de nunca mais deixar cair da mesa uma migalha de pão.
Com fome, o gato descobriu ligeirinho a entrada da cozinha e também não pediu licença para babar nas panelas.
Aí que o bicho pegou, em todos os sentidos. A mãe ficou furiosa. O irmão revoltado. Juntos, decretaram medidas drásticas: fechar sempre a porta da cozinha, tampar todas as lixeiras, guardar a comida em lugares altos e inacessíveis e não deixar sequer uma louça suja na pia. Medidas que não tiveram outro resultado do que gerar uma tensão absurda e improvável, numa casa de verão onde circulavam mais de dez pessoas por dia.

Surgiu então a ideia de procurar os "donos" do pet. Missão bastante trivial num povoado de 200 habitantes como o nosso. Impossível, no entanto, foi devolver o gato de fato. A cada tentativa de levar ele para lá, ele voltava no mesmo dia.
E nós voltávamos ao ponto de partida.
Um dia que eu surpreendi o meu irmão e a mãe conspirando na sala, tentei compartilhar com eles um pouco da minha experiência - pois apesar de não ter gato, já cheguei a morar com vários que não eram meus, em diferentes casas por onde eu passei. Eu disse que um gato, a meu ver, estava menos pela comida do que pela energia de um ambiente, pelo afeto que sentia e recebia. E que, nesse sentido, era até um bom sinal a gente ser escolhida por ele...
"Energia" é uma palavra que nunca me pareceu fazer sentido para a minha família de lá - a não ser falando em energia elétrica ou cinética. Mas pelo menos, o desafio afetivo foi abraçado com entusiasmo. Não encosta no gato que dá choque! A partir daí, se tornou expressamente proibido demonstrar qualquer tipo carinho ou gentileza para o bicho, e até mesmo olhar para ele se não fosse com desprezo.
Pode ser que o indesejado tenha ficado um pouco mais distante, mais escondido. Mas embora ele não foi. E, mesmo sem acesso à cozinha, ele não esperou passar mais de um dia sem comer: ele se pôs a caçar. Só que não ratos. Sim coelhos, que ele pegava sei lá onde. E trazia suas presas bem na porta da casa, devorava elas começando pelos olhos.
Aí foi que ele se deu mal. Quase perdeu seu principal aliado. Porque o pai, que tem medo de rato, também tem uma paixão incondicional por coelhos. Ele ficou super chateado. Só não abandonou a causa, pelo prazer de não estar concordando com a esposa. Mas ele começou a defender a tese de que, sim, era o caso de servir uma ração para esse gato e acabar com essa nóia toda.
Meu irmão estava cada vez mais indignado. Não pelos coelhos, mas sim pelo impasse onde nos encontrávamos. E talvez também pelo descaso das pessoas que não conseguiam enxergar o gato como um problema.

Tive um dia uma conversa bem séria com ele, onde eu disse justamente isso: que não tinha muito o que fazer. Porque a vida é assim, tu não pode simplesmente "tirar" do caminho quem te incomoda. Se o gato tá aí, tu vai ter que lidar com ele, conviver. Não tem outra. Parecia que as minhas palavras quicavam no rosto fechado dele, sem chegar aos ouvidos. "Mas eu não quero ter gato! E tenho o direito de escolher se quero um gato ou não na minha casa!" Aí eu respondi que, meu, o gato, ele não entende muito de propriedade, e nem de dinheiro, nem de cartório. Que ele está aqui na Terra, igual à gente, e que a gente não tem nenhum direito sobre ele, e que não tem o menor sentido para um bicho dizer que tal terreno assim delimitado pertence ao Dr Fulano e que ele não pode entrar. Que isso é coisa dos homi, e que é super capitalista ainda por cima, e que putaquepariu tá na hora dos seres humanos aprenderem a conviver com a natureza, e entre eles mesmos, sem desmatar, sem matar e sem querer se apropriar tudo e dominar tudo, sempre!

Salve as prostitutas que dão luz.

Nós ficamos nessa.
O pai largando comida nos cantos da casa, escondido da mãe que fingia que não via.

Quando acabou o verão, voltamos pra cidade, e o gato-guerreiro ficou lá.

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