terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Esse cabelo

- E você com esse cabelo!
Estávamos sentados na calçada, na frente do bar, com alguns amigos. Era uma tarde de sábado.
Ela já estava lá quando a gente chegou. Meio deitada, apoiada contra a parede, lata de refri na mão. Ela não pareceu se importar muito com a nossa presença. Assim como a gente não incluiu ela no nosso papo. Ficou cada um na sua bolha. Até o momento em que ela virou para mim e falou assim, bem alto:
- E você, com esse cabelo! Ela disse.
Colisão de bolhas.
Ela não estava olhando para minha cabeça. Mas sim para as minhas pernas.
- E você nem se preocupa, né! A gente fazendo de tudo e você...
Ela estava sorrindo, mas entendi que não era zoação. Era outra coisa. Abri a boca para responder e me encontrei muda.
Ficamos alguns segundos nos observando uma a outra, como num espelho. Ela - ou elx? - também tinha pelinhos nos seus braços e pernas. Só que descoloridos. Branquinhos na sua pele escura, e mais brilhantes ainda com a luz do sol.
- Nós fazendo de tudo...
Eu podia ter contado para ela que eu também tinha tentado fazer a mesma coisa, em casa, mais cedo. Resgatando uma sobra de pó descolorante no fundo de uma gaveta... Só que na hora de usar, achei que ele estava com aparência suspeita, amarelado e com maior cheiro de estragado. De fato, nem lembrava de quando eu tinha comprado ele. Fiquei então imaginando a quantidade de químicos que essa merda deve ter e o tamanho do efeito radioativo que poderia provocar nas minhas células... Azar. Corri para baixo do chuveiro e fiquei com as minhas pernas de macaco.
Mas, claro, não contei nada.
- E você não tá nem aí!
Ela continuava comentando, pensando alto, até que o meu silêncio tão desarmado acabou se tornando para ela uma oportunidade de desabafar. Desabafar sobre tudo. Sobre o jeito que tem que ter... e as coisas que tem que fazer. E sobre como as pessoas ficam te olhando, sempre... e o que elas querem, e que não dá para entender, porque as pessoas são muito complicadas e não sabem o que querem, e a gente também não sabe...  Só que mesmo assim, às vezes, dá vontade de fazer as coisas do jeito que a gente quer... e de ser do jeito que a gente é e... e... e dizer... dizer...
- FODA-SE!
- ISSO!
- Gostei de você!
- Eu também!
Nessa altura, os outros já tinham retomado a sua conversa. Tinha-se formado uma nova bolha ao redor de nós duas, onde ecoava a ironia dos nossos fracassos. Rebeldia é algo frágil.

De repente, ela deu uma risada forte e voltou a apoiar a cabeça contra a parede, desviando o olhar. Estourando a bolha novamente.
E mandando essas energias para algum lugar.