segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Cacique de Ramos

Tudo começou num evento de rua em Oswaldo Cruz. A Feira das Yabás. Eu tinha ido sozinha, assim, só para conhecer...
Aí aconteceu aquela coisa clássica: você dá de cara com algum amigo, que te convida a sentar junto com ele, a mãe e a namorada. Logo depois chega mais um cara e surge a ideia de terminar a noite num samba. Aí aquele outro amigo traz mais três e você acaba entrando num carro qualquer, sem saber para onde você está indo e menos ainda como você vai voltar pra casa depois.
- Você nunca foi no Cacique de Ramos???
- É que não sou do Rio...
Ao penetrar no galpão, senti aquela energia de vida tomar conta de mim, como se duas mãos estivessem esticando um sorriso no meu rosto de gringa. Abraços desconhecidos me deram a bem-vinda com todo o calor que se dá a um velho amigo cuja ausência era insuportável. "Aqui é tudo família!" falou a mãe do amigo no meu ouvido. Feliz dia dos pais! Fui tirando um por um os meus casacos de inverno e deixando a música me aquecer por dentro.
Dizem que tem gente que não gosta de samba. (?!)
Azar. Eu amo.


 

terça-feira, 19 de junho de 2018

Menino Bandido

Era uma sexta-feira nublada, com uma umidade no ar que te deixava molhado por dentro. A praça respirava uma energia cansada. E as pessoas arrastando o passo...
Parou um menino do meu lado. Parou parado. E ficou escutando a música. Escutando de verdade. Ele devia ter uns 10 ou 12 anos. Assim que eu terminei, ele pediu mais uma. Toquei. E, de novo, ele ficou ouvindo até o fim.
- Esse é seu trabalho? - ele perguntou.
- É.
- Você ganha muito dinheiro, né?
Ele exibia um sorriso malicioso. Respondi apontando pro chapéu que parecia até furado.
- Olha que hoje não é o dia de ficar rico, não!
- Mas os outros dias, você ganha mais!
- Costumo ganhar um pouco mais, é verdade.
- E o que você faz com esse dinheiro?
- Ué?! Eu como! Pago as contas! Sei lá!
Aí, ele ficou atônito, como se eu tivesse dado uma resposta totalmente fora do comum.
- E você? - eu perguntei. Vai para escola?
- Em Copacabana.
- Você mora por lá?
Ele desviou a cabeça, visivelmente incomodado com o assunto. De fato, já era quase uma hora da tarde e eu apostava tranquilamente todo o dinheiro que não estava no chapéu que esse menino passaria o dia na praça.
- É que eu sou bandido.
Ele falou num tom muito sério e desafiador, olhos nos olhos.
- A é?
- Você não acredita?
- Não sei.
- Então vou pegar uma arma e matar alguém.
- Matar pra quê?
- Pra você ver!
- E a pessoa? Coitada!
- Mas é que você não acredita!
- O que te importa?
- Você não acha que tenho cara de bandido?
- Ninguém tem cara de bandido!
- Então deixa que eu vou lá!
Ele falou e não se mexeu um centímetro. Mas ficou repetindo, para ele mesmo, bem chateado: "Eu queria fazer isso agora, para você ver... Ter uma arma..."
E logo virou para mim de novo.
- Você já matou alguém?
- Não.
- Você já conheceu bandidos?
- Mais ou menos.
- Já segurou uma arma?
- Não!
- Mas você não tem emoção na sua vida?!
- ... ?
- O que é que você faz na vida que te emociona?!
- ... Sei lá... Muita coisa...
A provocação foi trivial mas suficiente para me deixar desarmada. Fiquei procurando em vão algum exemplo, alguma lembrança, alguma realização legal ou minimamente emocionante da minha vida...
- Pois é...
- Toca mais uma!
- O quê?!
- Uma música que eu conheça.
- Tipo o quê?
- Tipo pagode.
- Não toco pagode...
Respirou fundo com ar de: "Realmente você não presta".
Me arrisquei num samba mais conhecido.
Já nos primeiros acordes, o rosto dele se iluminou.
- ALCIONE!!!
Confesso que eu não esperava isso. E ele se pôs a dançar, sozinho, no meio da praça, sorrindo e cantando. Quando acabou a música, ele veio determinado.
- Agora eu!
Pegou o microfone e o violão, naquela animação toda. E de repente parou, meio sem graça.
- É que não sei cantar...
- Mmm... Sabe rimar?
- Também não...
- Então vai falando o que quiser.
- Já sei! Vou descrever as pessoas! A moça de bolsinha preta e sapatos altos. O coroa de óculos e casaco marrom. As duas meninas rindo com cabelo comprido e uniforme do colégio. A senhora da banca que vende boneca e que está com frio. O rapaz de blusão que parou para comer uma pipoca...
Não tinha ironia nem maldade na brincadeira. Ele simplesmente descrevia um por um os transeuntes da praça. Segurando o violão ao contrário e tocando algum acorde aleatório entre duas frases.
E ele não demorou muito para chamar a atenção e a simpatia de todo mundo..
Só parou quando ele mesmo quis.
- Mandou bem, menino!
Eu já ia guardando as coisas.
- Você não vai mais tocar?
- É que tá começando a chover. Mais tarde, eu volto.
- Tá bom.
- Qual é teu nome?
- Mmm... Deixa eu pensar... Pedro!
- Tão tá! Pode ser! Prazer, Pedro!
Antes de eu terminar de falar, ele já tinha ido embora.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Ferrô


Resumindo...
A igreja evangélica já se tornou um grande poder dentro das favelas.
Junto com o tráfico, claro.
Mas o tráfico também é evangélico.
Assim como o policial é traficante.
E assim como o Prefeito é um Bispo...
Apoiado por vereadores milicianos...
Numa cidade extremamente drogada.
...
Ferrô.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Nossos Medos

Foi numa atividade com crianças. Uma contação de histórias, coisa mais fofa. Perguntaram sobre os nossos medos. Quem tem medo de quê?
- Eu tenho medo de rato!
- Eu não tenho medo de nada!
- Alguém tem medo do escuro?
- Não!
- Sim!
- Medo de arranha.
- De barata!
- De carro.
- ??!!!
Ops. Saiu assim, sozinho, não pensei. Mas quase ninguém ouviu. Só o menino de meu lado, que virou para mim, perplexo, como se eu tivesse dado a resposta mais bizarra do mundo. Rolou até um silêncio meio pesado, que só nós ouvimos.
- Por quê, tia?
- Sei lá... 

E agora? ...
- Carro mata mais do que rato, não é?
Ele encolheu os ombros com a cara de quem não entendeu muito bem, e desviou o olhar.
Sei lá...

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Eu e ela

É que os amigos são muito careta, às vezes. Saem duma reunião e vão para outra. Ou vão para casa. Ou estão cansados. Ou acham que com R$5,00 no bolso, não vão para lugar nenhum.
Enfim... não era nem 21 horas e eu me encontrava sozinha na Lapa com a Bixa (é nome da minha bike).
Fomos andando.
Paramos num boteco. Lógico.
Aquele que tem os piores tragos, mas onde todo mundo conversa com todo mundo. É disso que eu precisava. Ver as pessoas conversarem. Eu já não tinha mais nada para falar. Fiquei aí observando, saboreando uma daquelas canhas de garrafão, baratíssimas e bem servidas.
Quando acabou, fiquei mais um tempo discutindo comigo mesmo para decidir se era o caso de repetir ou de voltar para casa... Acabei optando com uma determinação surpreendente pela segunda opção.
- Você tá tomando o quê?
Um cara chamou lá do fundo do bar.
- Eu? Nada!
Olhei pro meu copo vazio.
- Eu tava com cachaça, mas...
- Pede mais uma!
- Precisa não! Obrigada! Já tô indo...
- Pede mais uma e põe na minha conta!
- Obrigada, mas não vou querer, mesmo.
- Eu gosto da sua música!
- ... ??? ... !!!
- Pede mais uma!
- Peraí... Onde é que você me viu cantar?
- Em vários lugares! E já te vi andando por aí, também, naquela bicicleta colorida.
- ...
- Pior é que nunca te dei nada! Qual é a cachaça que cê quer?
- Sei lá! Tanto faz... Pode ser essa mineira, aí...
- Moço! Serve mais uma! Ou duas! Que essa menina canta muito!
Falou bem alto para todo mundo ouvir, deixou pago e foi embora.
...
Bebi.
...
E aqui tô eu...
...
..
.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Chorei


Chorei, meu. Chorei. Aquele dia.
Não à noite. À noite, eu fiquei olhando as estrelas. Elas não estão no lugar certo, já percebeu? Os desenhos delas... Os triângulos são muito tortos! Os quadrados não são nem um pouco quadrados. Dá vontade de dar uma mexida aí, bem de leve, na ponta dos dedos...
Fiquei horas assim esperando para ver se elas iam não se mover sozinhas. Mas só piorou. E acabei dormindo. Lá pelas três ou quatro horas. No chão do terraço.

Não foi nem o sol que me acordou. Quem me acordou foram os aviões, passando logo ali, em cima da minha cabeça. Costumo escutá-los quando estou no quarto. Mas eu não sabia que eles passavam tão perto. Muito perto, mesmo. Muito perto.
Levantei. Fiz um café. Normal. Tomei um banho gelado, que era para despertar de vez. Não deu certo. Demorei para sair. Quando desci, o pessoal da casa já tinha acordado. O Oscar sentado no sofá, com café e cigarro na mão. Oscar sempre tem uma palavra gentil quando me vê passando com violão nas costas. Até confesso que, às vezes, eu faço questão de esperar ele levantar para sair, só para pegar esse pouquinho de ânimo a mais.
- Bom dia!
- Bdia...
- Vai tocar?
- Vou.
- Ai! Minha heroína!
- Obrigada, Oscar.
Fui.

Calor infernal na rua. E aquele pressentimento no caminho, de que hoje não seria o dia... Mas também, não tinha como saber. Achei um cantinho de sombra numa calçada e montei o equipamento.
Já suando.
E comecei a tocar.
...
Meio vazia. Invisível.
E as pessoas passando.
Negando até um olhar, um sorriso.
Não era o dia, mesmo. 35 graus não é mole. Só sai pra rua quem tem algo muito importante para fazer. E não tem ouvido nem para samba.
E eu cantando.
Fingindo.
Pingando.
...
Volte e meia, alguém afrouxava o passo e botava a mão no bolso. E depois olhava para mim com cara de: “Poxa, se eu tivesse aquele realzinho, eu até te dava...” E seguia seu caminho.
...
Depois de uns 40 minutos, um rapaz finalmente achou aquela moedinha no fundo do bolso e me deu. 50 centavos. Agradeci do coração.
...
Depois de quase duas horas cantando, eu tinha ganhado mais três notas de dois e alguns trocados.
Dava vontade de chorar, mesmo...
Mas não chorei. Segui tocando.
Claro que o certo era voltar para casa. Mas também... voltar para quê? Não tinha nada para fazer em casa...
...
Melhor estar aqui tocando... mais uma música...
...
Mais uma.
...
Mais umazinha...
...
E nada. Ninguém. Nada.
...
Tá, mais uma... e depois dessa...

Aí, já não lembro qual é a música que eu estava tocando. Só sei que eu estava chegando no final dela. Tipo, última estrofe. Quando uma senhora apareceu de repente na minha frente e agarrou a minha mão. A mão direita, a que toca as cordas. Tive que parar.
“Segura aí!” Ela falou.
Segurei. Ela tinha colocado algo na minha palma.
E ficou me olhando bem nos olhos, com aquela firmeza no olhar.
“Você tem uma voz maravilhosa. Você tem que continuar.”
Falou.
E foi embora.
...
Abri a mão. Tinha uma nota de vinte reais. Bem dobradinha, num quadradinho.
Botei no bolso e retomei a música de onde eu estava.
Mas aí, começou a apertar o peito... 
Só que já não dava mais para parar. Tomei uma água e tentei pensar em alguma música mais leve, que os meus nervos pudessem aguentar. Missão impossível! Pois todas as músicas que eu toco têm a sua carga emocional... alguma lembrança, alguma história, algum amigo...
“Se a gente lembra só para lembrar... O amor que a gente um dia...”

Chegou então uma outra senhora. 
Argentina, ela. 
Parou na minha frente, abriu a carteira, puxou uma nota de vinte reais e a colocou no chapéu. 
E foi embora - ainda agradecendo com sorriso educado.
...
..
.
Aí foi demais.
Travei. Fiquei pensando... Me perguntando... por que é que às vezes as coisas dão certo... E às vezes não... E qual é a nossa responsabilidade sobre isso. O nosso poder. E quantos fatores interferem. E que não têm nada a ver com a gente. Ou talvez tenham... E quantas pessoas. E quantas coisas que a gente não entende. Sequer percebe. Quantas coisas... A gente...
E desmontei. Não chorei, não! Só fiquei sem fôlego. Fui guardando as coisas, devagarinho. Com calma.
E voltei pedalando no sol.
Só parei para comprar algo de comida pra casa, com aquela segunda nota de vinte.
Mas a primeira nota, eu guardei. E tá guardada ainda. Dobradinha, daquele jeito. Vou gastar, não!

Quando cheguei em casa, o Oscar estava cozinhando. Meio atrasado, meio atrapalhado, do jeito dele. Fui direto pro quarto.

E caí em cima da cama.
Suadaça. 
Molhando os lençois e tudo.
Nem liguei o ventilador.
Fiquei aí. Deitada.
Naquele bafo.
...
E aí sim, meu...
Aí sim.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Noite carioca

Saí de casa meio correndo, como sempre, no impulso, enfiando rapidamente as coisas no bolso: chave, celular, caderno, dinheiro...
Parei.
Dei uma olhada geral no quarto. Aquela impressão de estar esquecendo algo...
Apanhei o violão e meti o pé.

Já era noite, mas não sei que horas. Nem sei para onde eu estava indo. Era domingo.
BAM!
Uma moto. Atropelada bem na minha frente. Dois meninos jogados no chão que nem bonecos. Vivos. Nada muito grave. Um pode ter quebrado a perna, o outro deslocou o ombro. A SAMU chegou.
Atravessei a rua e fui parar num boteco.
- Moço! Me dá u...
O garçom já estava vindo na minha direção com sorriso cúmplice e martelinho de cachaça na mão.
Sentei.
Fiquei aí me questionando sobre a necessidade de me questionar sobre a minha rotina de vida no Rio...

- É que a vida é dura!
Quando ergui a cabeça, tinha um rapaz do meu lado.
- É assim mermo! A vida é dura! O cara que não sabe!
- Quer uma cachaça?
- Precisa, não. Tenho a minha.
Ele levantou a camiseta para me mostrar a garrafinha de caninha da roça que ele guardava amarrada na cintura.
- E aí? O que houve? - perguntei.
- Furei! Eu passei o dia todo catando latinhas, sabe o que é isso? É trabalho! E aí, eu tava indo pra lá pra vender e o cara veio me roubar. Eu furei ele!
- Como assim?!
Ele olhou pros lados e puxou o cantinho da luva que ele usava na mão direita, deixando aparecer duas facas afiadas.
- Eu ando preparado...
- ...
Botou um cigarro na boca e agarrou um isqueiro no balcão.
- E cadê as latinhas?
- Vendi. Assim eu comprei a cachaça! E ainda sobrou!
Ele abriu a outra mão para me mostrar um papel bolado que parecia uma nota de 10 reais.
- E cadê o cara?
- Sei lá!
- Mas ele tá bem?
- Ué! Levantou, foi embora!
- ...
- Ele achava o quê? Que podia mandar em mim? Só porque tem duas vezes meu tamanho? Ele não sabe, não! A vida é dura! Eu te digo! Tive que furar!
Ascendeu o cigarro e foi embora despedindo.
- Desculpa qualquer coisa!

Fiquei sem reação, olhando ele se afastando no escuro. Alguém veio falar no meu ouvido.
- Rio de janeiro, menina. Te cuida.
Um senhor. Respondi com olhar indiferente. E puxei o violão, que é o que eu faço quando não sei o que fazer.

Comecei a dedilhar. Uma turma barulhenta e bêbada passou então na frente do boteco. Titubeando. Alguns aproveitaram para entrar.
- Olhaí que tem até um cara tocando!
Ficaram me observando um tempo.
- É menina.
- Heim?
- Você falou "um cara". Mas é uma menina!
- É.
Até que num gesto totalmente natural, um deles pegou a minha cachaça e tomou ela num trago só.
- UÉ!!!
Gritei. E parei de tocar. Ele levou um susto.
- Era sua? Foi mal...
- Agora pede outra!
- Será?
- Simsinhor!
Ele pediu. Pediu até duas. E mais uma carteira de cigarro. Mas o resto do grupo já estava querendo ir embora.
- E aí? Tão fazendo o quê?
- Comprando cigarro!
- Tão demorando!
- Por causa dela! Ela tá tocando!
- O que é que tem a ver?
O homem virou para mim, cobrando.
- Não é que você canta?
- ...
- Então manda um samba aí para eles ver!

Silêncio.
Todo mundo olhando para mim. Esperando alguma coisa acontecer.
E aí?!
Tudo bem. Baixei a cabeça e comecei a tocar.
Eu nem estava no terceiro acorde, quando a turma toda se empolgou para cantar junto.
E assim seguimos a noite, na maior alegria, passando a viola, desafinando Chicos e Caetanos.

Quando o último cara espalhou todas as suas moedas no balcão e perguntou se podia pagar com R$2,35 uma última dose daquela mineira, entendi que estava na hora de ir embora.
Guardei a viola.
O garçom pegou os trocados e serviu um mais martelinho transbordando de pinga.
- Cê mora longe?
- Por aí...
- Te cuida...
- Eu sei.