sábado, 30 de dezembro de 2017

Pequenos cuidados

"Eu queria que você se cuidasse mais..."
Lembro muito bem da única vez em que um amigo me falou isso, ainda com toda a cautela de quem suspeita a minha propensão meio adolescente a estourar com esse tipo de intromissão na minha vida.
Agora, não lembro de quantas vezes eu quis falar a mesma coisa para uma pessoa que eu amava. Nem foram tantas vezes. Mas igual, não falei. Provavelmente por orgulho e respeito escancarado pela liberdade dos meus amigos; ou por não ter encontrado a mesma delicadeza no tom e nas palavras.
Ou talvez, também, por medo de reproduzir a hipocrisia de uma sociedade que fica alertando a gente o tempo todo mas anda conscientemente a caminho de um suicídio coletivo. Tipo, o irmão que te manda fechar os olhos, te puxa pelo braço em direção ao abismo e te assusta a cada passo com os buracos da estrada.
Ou tipo a mãe que põe uma panela de brigadeiro na tua frente, uma colher na tua mão e sai avisando (com pouca veemência) que não é para comer porque faz mal.

E você fica aí, roído pelo súbito desejo de um docinho, mas sem conseguir avaliar a seriedade do risco e o tamanho das tais consequências. Pois aqui estamos todxs: mercê de uma civilização decaída, que inventou o pornô com camisinha, o banho de sol com protetor e a coca-cola zero vendida em farmácia.

"A cada geração seus problemas" me explicou um dia um velho amigo que hoje faz carreira na indústria petroleira.
...
Você agarrou a panela quase sem perceber, já no automático, enquanto estava fazendo as contas.
São 24 horas por dia. Oito horas no trabalho, duas no transporte, duas para comer e sete para dormir. Resta encaixar a novela, a igreja, o jogo, a maconha, os filhos e o namoro. Realmente, e mesmo contando com o fim de semana (salve!), sobra pouco tempo para viver - e ainda com cuidado.

Chegando nessa conclusão, você segue se deleitando como nunca com aquele concentrado achocolatado de açucar e lactose. Mas sem deixar de lembrar das sagradas recomendações da sua mãe.
Cuidado para não se sujar, cuidado para não cair, cuidado para não se machucar, cuidado para não se resfriar. Cuidado para não esquecer de nada, para não se atrasar, para não se perder!
Não sai pra rua sozinho - nem mal acompanhado! Nem se casa à noite. De dia, só armado.
Cuidado com o assaltante, cuidado com o motorista, com o cachorro brabo, com o bichinho da goiaba, com o calor, com o frio, com a chuva, com o vento...

MA ESTOU ME CUIDANDO, MÃE! Eu me cuido, me cuido, sim, todo dia! A prova é que estou viva! Pedalando com toda força - cadê o capacete, p...?! - no meio dos carros. Até pararia no sinal, se eu não estivesse na contra-mão.

É quase meia-noite.
Eu já não sei mais o que eu queria dizer com esse texto.
O amigo petroleiro tomando drinque em Dubai e você cuidadosíssimo ao raspar o fundo da panela com a ponta da colher.
Todxs nós começando de repente a questionar a prerrogativa do prazer de hoje em relação ao amanhã.
Mas indo dormir às 23h59, com a consciência aliviada.
"Amanhã é outro dia", disse um tal profeta.

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